Crônica de Carlos Monteiro
Carlos Monteiro — publicitário, jornalista e fotógrafo carioca.

Estava eu, terça-feira, a andar na areia andei, pela praia até o Leblon, olhar atento ao letreiro do Hotel Marina, que já não há, já não acende mais, já não ilumina como o farol da ilha; a praia ficou mais triste, sinto saudades do Caneco 70. Venho percebendo que as meninas do bairro já não me veem, serão os óculos com nova armação ou serei eu apenas um inocente da ‘ilha’ incrustada na Zona Sul carioca?

Buscava, apressado, chegar a tempo ao templo do consumo, junto ao teatro cuja casa é maior, cinquentão com cara de menino-moço, para o lançamento do mais recente livro do queridíssimo Martinho, “Contos sensuais e algo mais” (editora Patuá — 2022).

Atravessei corredores adornados por finíssimo mármore porcelanato e lá estava ela; majestosa, impávida, trav(ê)ssa em suas prateleiras alvissareiras, que contam contos sem aumentar um ponto sequer. Tudo ali é real, tudo é ficção, tudo é intencional, inconsciente coletivo talvez. Adentraram aos meus pulmões o cheiro da “Rosa de Hiroshima”, desta vez com cor, com perfume e exalando aromas roubados literalmente literários.

Quase havia me esquecido do ar que paira numa livraria, mas minha memória olfativa não foi traidora — mistura de papel e tinta, porção mágica gutemberguiana. Será que não me lembrava mais? Ela retornou como se fora o aroma da deusa banhada em sândalo, puro deleite. Ali estavam meus olhos atentos, mareados, um tanto quanto nervosos em busca de novos títulos, novos talentos. Veio a mim, do poeta da Vila, “Ex-amor” e cantarolei seus versos-poema mentalmente: “… Ex-amor/Gostaria que tu soubesses/O quanto que eu sofri/Ao ter que me afastar de ti…”. Reconciliava-me ali, com ela, numa catarse literária em que o coração pulsava mais que as maracas, símbolos que retinem meu amor pela leitura.

Quão bom foi dedilhar páginas e mais páginas de editoras das Gerais, terras de Carolina Maria de Jesus, Adélia Prado, Leida Reis, Anajá Caetano. Libertas quæ sera tamen? Nunca é tarde para ser feliz nas folhas encantadas de um livro.

Naquela ansiedade da chegada do convidado maior, barulhinho gostoso, burburinho de encontros casuais, intelectuais literatas, encomendados pela deusa Atenas e por Apolo, pus-me a prosear com o poeta e ensaísta Adriano Espínola, mestre doutor em Literatura, nascido em terras alencarianas de quem muito me orgulho de ter o privilégio de compartilhar da amizade. Era um ambiente de alegria, que, certamente, terminaria ao raiar do dia.

A magia estava no ar. Ao meu encontro, para um cumprimento saudoso, veio Fernando Molica, que é um daqueles cariocas sangue bom, que pinga gotas de limão no mate, diretamente das bombonas dos intrépidos ‘mateiros’, das escaldantes areias saarianas da República Independente de Ipanema, pede chorinho e que harmoniza Biscoito Globo, amendoim torrado — iguarias genuinamente da gema que, desconfio, vêm de origens tupinambás, com a erva-mate sulista, trazida por algum viajante que resolveu gelá-la por aqui. Matte Leão, um ou vários por dia, do Leme ao Pontal. Ao sair, do abraço fraterno e saudoso, esbarrou numa pilha de livros que compunham, vamos por assim dizer, uma torre babeliana de temas, a ‘ponta de gôndola’ das estantes-balcão, estrategicamente posicionadas sob os mais variados temas daquela casa cultural efervescente.

Poeta que é, dono de expressões marcantes, soltou um sonoro… “e distraído, tropeço em livros”!

Ato contínuo, já aboletado do outro lado da fila, sim, em noite de autógrafos ‘deformam-se’ muitas em meio ao ‘caos’ organizado cujo lema é “se acertar direitinho todo mundo recebe o quinhão da glória do autógrafo”, escriba em bem traçadas linhas, Geraldinho Carneiro esbarra em uma pequena pilha de obras, monumentais, que vão ao chão como se flutuassem, pássaros da manhã.

Apesar da distância, nos entreolhamos e a piada interna fluiu em leituras labiais: “não sou só eu!”.

Pensei cá com minhas letrinhas da sopa; fonte Effra em papel Pólen 130g. E se todos tropeçássemos na poesia de Drummond das pedras do caminho? Nos contos de Guimarães Rosa, beleza de Nhorinhá? Na crônica, uma verdadeira metáfora, olhando as borboletas, de Rubem Braga ou, até quem sabe, no verbete libélula de Aurélio Buarque.

Não podemos mais, em pleno século XXI, ‘demonizar’ livros, bani-los de suas casas, à própria sorte de condenados à fogueira das vaidades, cinzas existencialistas.

Olhai, oh Pai, oh, para tantos Fernando Molica que ainda vivem tropeçando em livros: eles sabem, grandiosamente, transformar pequenos obstáculos em grandiloquentes em versos-odisseias!

Fernando: o homem que atravessa a livraria flutuando em páginas.