Crônica de Carlos Monteiro
Carlos Monteiro — publicitário, jornalista e fotógrafo carioca.
Andava eu, distraidamente pela cidade, observando novos ângulos para fotografar. Absorto em detalhes, luzes, quinas e esquinas, levava a mochila, com os equipamentos inerentes a tal tarefa, à frente do corpo como maneira de proteção ao equipamento e rapidez ao buscar a câmera. Confesso, é um peso considerável, mas nada que os dias e dias de academia não possam dar conta.
E lá ia eu, um clique ali, outro lá, um outro, ainda, acolá… aliás, que advérbio bonito esse, junto com libélula, apontada por Aurélio Buarque de Holanda, na minha opinião, é uma das palavras mais sonoras da Língua Portuguesa. Via-me com Rubem Braga ‘perseguindo’ a “Borboleta Amarela”, tal qual era minha plenitude em conseguir enxergar novas perspectivas da cidade, novos vértices, aparar as arestas através das lentes.
No meio do caminho não havia uma pedra drummoniana, mas vários buracos, crateras lunares insepultas, cujo alcaide teima em não as ver, muito menos em consertá-las. E agora burgomestre o que será de nós se cairmos nesses buracos negros? Levarão a outra dimensão? Continuava eu, visão aguilar, pensamentos perdidos em ilusão metropolitana sueca.
Dado momento, minha catarse, onde expurgava os problemas da Cidade e vislumbrava a minha panapaná, sou interrompido por um sonoro “psiu” e vários “eis”. Achei que não era comigo, talvez fosse o chamamento a algum transeunte não tão distraído, quem sabe, até um paquerador machista, em galanteios inversos, à dama que, transeunte apressada, transpunha a passadeira do sinal.
Com a intensividade e aproximação sonora e afincada, pus-me a, displicentemente, dirigir o olhar para onde partiam as tais notas, quase musicais, cadentes e silentes que eram, quase um mantra, entremeadas de ‘psius’, ‘eis’, ‘ois’ e ‘aís’.
Maviosas poderiam ser, sem dúvida, uma das maravilhosas músicas, saídas das carrapetas dos DJs do Baile Charm de Madureira. Não eram, mas o chamamento era comigo, era para mim, era meu. Vinham de uma jovem franzina, seus trinta e pouquíssimos anos, claramente deficiente intelectual.
Olhar perdido, sorriso largo, lhe faltavam alguns dentes. Parei para lhe dar atenção como sempre faço. São personagens riquíssimos, contam histórias de vida inimagináveis, são os tais invisíveis que, infelizmente, a sociedade não quer enxergar.
Nem tive tempo de cumprimentá-la; antes do meu boa-tarde veio um sonoro “ajeita essa postura homem!!!”, com uns quinze pontos de exclamação, tal foi a enfática que usou e, no mesmo pé que veio, se foi em meio ao caos dos viandantes da megalópole.
Fiquei ali, parado e pregado na pedra de Drummond. Então era isso; uma deficiente intelectual me mostrando o quanto eu estava desprovido de sensatez. Aprumei o corpo, empinei o peito, estufando-o tal qual galo de briga e segui meu caminho pensativo cantarolando “Balada do louco” de Lóki e “Balada para um loco” de Astor Piazzolla.
“Cuándo, de repente, detras de un árbol, me aparezco yo…/… Por la ribera de tu sábana vendré/ Con un poema y un trombón/ A desvelarte el corazón…”
A razão tem razões que ela própria desconhece.
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