Lucimar Souza – Jornalista

O que eles dizem sobre a criança e sobre quem educa. Em muitas creches públicas do Brasil, os registros pedagógicos fazem parte da rotina de professoras que, entre trocas de fralda, rodas de histórias e choros inesperados, anotam o que viram — e o que sentiram. Muito além de simples relatórios, esses registros podem se tornar preciosos testemunhos da escuta atenta à infância. Mas afinal, o que são registros pedagógicos? E o que eles revelam sobre a criança e sobre quem educa? Registro administrativo × registro pedagógico. É importante distinguir o registro administrativo — que documenta frequência, alimentação ou avaliações formais — do registro pedagógico. Este último revela o olhar da educadora sobre os pequenos gestos, as descobertas e os conflitos vividos pelas crianças.

Ele traduz a escuta ativa e a interpretação de um sujeito em formação. Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os registros são instrumentos essenciais na organização do trabalho pedagógico, pois permitem observar e refletir sobre o desenvolvimento integral das crianças. Para a especialista Adriana Friedmann, eles são formas de documentar a criança real, e não a idealizada. Registros pedagógicos são anotações, fotografias, vídeos, desenhos e outras formas de documentar as vivências das crianças em espaços educativos. Eles servem não apenas para lembrar o que foi feito, mas para refletir sobre o que foi sentido, descoberto e vivido. Diferença entre registro administrativo e pedagógico:
Registro Administrativo
Registro Pedagógico
Foca em dados objetivos
Foca em experiências e sentidos
Lista de presença, horários, alimentação
Observação de brincadeiras, interações, aprendizagens
Serve para controle institucional
Serve para reflexão e planejamento pedagógico
Não considera a escuta da criança
Parte da escuta ativa e sensível

O desafio da escuta na rotina agitada
Em tempos de jornadas exaustivas e turmas numerosas, como garantir o tempo para registrar com qualidade? Para a professora Sandra Alves, da rede pública de São Paulo, “não se trata apenas de anotar o que a criança fez, mas de traduzir aquilo que ela expressou com o corpo, com o olhar, com o silêncio”. A escuta, nesse contexto, vai além do ouvido: ela se dá também pelos olhos, pela empatia e pela presença atenta.
Na correria das trocas, do banho, das refeições, pode parecer inviável parar para observar e registrar. Mas iniciativas simples têm mostrado que é possível criar espaços de escuta mesmo em meio ao movimento. É o caso de uma prática inspirada nos estudos de Cynthia Veiga e Carla Rinaldi, que propõe o uso de perguntas-disparadoras para orientar o olhar do educador durante o dia.

Como funciona: A educadora escolhe uma pergunta simples para guiar sua escuta ao longo do dia. Pode ser: O que fez essa criança sorrir hoje? Que gesto ela repetiu várias vezes? Como ela buscou ou evitou companhia? Que palavra ou som ela usou de forma curiosa?
Pesquisa de 2022 do Instituto Alana em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal revelou que 84% dos professores da educação infantil consideram os registros fundamentais para o planejamento, mas apenas 41% dizem ter tempo suficiente para fazê-los de forma cuidadosa. Isso aponta para um desafio concreto: registrar com qualidade exige condições adequadas de trabalho e valorização da escuta pedagógica.
A concepção de infância por trás do registro

O modo como registramos diz muito sobre como vemos a criança. Uma abordagem que valoriza a escuta e a singularidade de cada gesto revela uma concepção de infância ativa, potente e cidadã. Já registros padronizados e apressados tendem a reduzir a criança a indicadores de desempenho.
Para o educador italiano Loris Malaguzzi, fundador da abordagem Reggio Emilia, “cada criança é feita de cem linguagens”, e os registros são uma forma de não deixar que nenhuma delas se perca. Uma prática possível: escrever com afeto e intenção. Um bom registro pedagógico não precisa ser longo, mas precisa ser verdadeiro. Veja este exemplo real (nomes fictícios): Hoje observei que João não quis brincar com blocos como de costume. Sentou-se perto da janela e ficou olhando as árvores. Mais tarde, disse baixinho que estava com saudade do avô.

No desenho da tarde, fez uma figura com cabelos brancos. Esse registro me ajudou a pensar sobre como o luto, as separações e as ausências também se expressam na infância. Nessa prática, a educadora escreve não apenas para documentar, mas para escutar de novo.  Para entender o que o instante revelou — e o que a infância, silenciosamente, compartilhou. Além de apoiar o planejamento, os registros revelam nossa própria concepção de infância. Se acreditamos que a criança é um ser ativo, curioso e potente, nossos registros não serão sobre “comportamentos”, mas sobre experiências e significados. Como diz Adriana Friedmann, “registrar é um gesto de cuidado e reconhecimento”. Segundo o Censo Escolar 2023, mais de 8 milhões de crianças estão matriculadas na educação infantil no Brasil. Pesquisa do Instituto Alana (2021) mostrou que 63% dos profissionais da educação infantil sentem falta de tempo e formação específica para realizar registros significativos.

A BNCC reforça que os registros devem “valorizar as múltiplas formas de expressão das crianças e subsidiar a reflexão docente sobre suas práticas.”
Ao olhar para um caderno de registros, talvez um familiar veja apenas anotações para guardar como recordações. Mas para quem educa com escuta e intenção, cada página carrega o que a professora viu — e ninguém mais percebeu ou não teve as oportunidades que a escola oferece. Na força dos registros pedagógicos é possível transformar o cotidiano em memória viva, e a rotina em ato educativo com significado e amor e que podem ser levados para a vida toda.