Claudia Zanol – Professora
Ao acordar, suspire bem vagarosamente. É notório que o ser humano desaprendeu o ato da observação, digo isso, porque na semana passada, vindo do centro da cidade, pude ver da janela do ônibus coisas que por mim passavam despercebidas, por exemplo, uma loja nova na esquina, uma placa de pare, um restaurante à la carte, tudo passou por mim ou eu passei por tudo sem enxergar. Creio que exista uma diferença mínima entre ver e enxergar.
Nos outdoors da praça principal, mensagens e imagens de mulheres perfeitas, silhuetas graciosas, outros outdoors apresentavam.
Propagandas natalinas, já anunciando deliciosas refeições e a família reunida à mesa, no canto dos olhos, transeuntes e meninos da rua ou de rua”, como comumente são chamados, identidades desconhecidas e esquecidas por muitos.
O ônibus parou no sinal e adentrou segurando uma caixa de sapato forrada com papel de presentes, um garoto de rua trajava um short.
Verde com listras brancas e uma camisa de malha com um desenho do Batman no peito, fiquei observando como falava e explicava o que muitos ignoram pela constância do acontecimento, dentro da caixa, doces, balas de todas as formas, bombons, chicletes de framboesa e menta.
Passava de assento a assento, equilibrando com uma mão, quando a outra mão segurava com força a caixa de guloseimas, parou do meu lado em frente ao assento depois da roleta. Fiquei pensando o que esse garoto de rua faria com o dinheiro que ganhasse, será que compraria um maço de cigarros, uma garrafa de alguma bebida destilada, pois pensei, aliás, julguei o réu sem defesa, não me atrevi a continuar com meus pensamentos vis e retornei o meu olhar e comecei e enxergar o que não havia percebido antes, em uma das mãos trazia notas emboladas, amassadas e sujas.
Ele tinha onde morar?
Ele tinha uma família?
Eu ia à escola, tomava banho, comia?
E meus pensamentos passaram de um mero acusador, de um juiz para um simples réu, comecei não só ver o que ele trazia, mas enxergar além de suas vestes sujas, além do chinelo trocado, além da blusa do seu herói.
Vi um garoto, como eu um dia fui, magrelo, olhos espertos e de uma eloquência de poucos.
Vi um garoto que necessitava ser ouvido, necessitava ser respeitado, necessitava que o enxergasse como parte de uma sociedade
fragilizada, covarde, egoísta e preconceituosa.
Tirei do meu bolso algumas notas e comprei praticamente quase tudo que levava na caixa, a minha atitude altruísta não dirá nada do que sou, só mostrará o quão podemos ser diante do flagelo humano, ser solidário deveria ser uma atitude nata, própria do ser humano.
Mais à frente, o ônibus parou e ele desceu, com um sorriso no rosto, por um instante, tive o vislumbre de enxergar um menino descendo as escadas da escola correndo atrás de sua bola. E meus olhos se encheram de esperança, não, se encheram de bolas nos pés e chuteiras coloridas. O menino de rua se transformou. Somos a soma de nossos afetos, pois o que amamos se eterniza dentro de nós. A memória é contrária ao tempo.
Adélia Prado.
Deixar um comentário